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Gypsy é uma obra prima

Gypsy é uma obra prima

Só agora pude assistir à montagem brasileira do musical Gypsy, mais uma impecável realização da dupla Charles Moeller e Claudio Botelho, atualmente em cartaz no Teatro Alpha. Uma plateia lotada, com o apoio de um balcão repleto de estudantes me confirmou o status do show como um dos melhores já feitos na Broadway, ao menos em termos de libreto, roteiro. O do espetáculo é perfeito.

Obra de Artur Laurents (ainda vivo, ele é também criador de West Side Story) inspirada num livro autobiográfico da stripper mais famosa dos Estados Unidos, Gypsy Rose Lee (1911-70), famosa por seu senso de humor e o fato de tirar pouca roupa. Ela chegou a fazer alguns filmes, mas quem era mais famosa era sua irmã, a June, de quem se fala tanto na peça, a recém falecida June Havoc (1912-2010). O amante mais famoso de Gypsy foi o diretor Otto Preminger, com quem teve um filho. A Mãe Rose morreu de câncer de colon em 1954, e o show estreou em 1957, estrelado pela grande Ethel Merman. É provavelmente o melhor papel feminino de todo o gênero. Rose é a perfeita stage-mother, aquelas mulheres monstruosas que querem a todo custo transformar as filhas ou filhos, mesmo sem talento, em astros. E fazem tudo para realizar neles, os sonhos que no fundo eram delas.

Rose foi a maior encarnação desse personagem que todo mundo que trabalha em teatro conhece. Na vida real, era baixinha e lésbica (o roteiro da peça inventou um interesse romântico para segurar a história e não deixá-la muito antipática, ou seja, Herbie nunca existiu na vida real).

Gypsy (nada a ver com ciganos, embora os coristas de musicais também tenham esse apelido) é mais a história de Rose do que de suas filhas, fazendo uma recriação de um estilo de teatro já morto, o vaudeville. Um dos charmes da atual montagem, a primeira brasileira, é que o palco do Alpha tem coxia pequena, o que obriga os diretores a usarem a frente do palco para os chamados números de cortina, enquanto mudam os cenários lá atrás, às pressas. A solução deles foi ir apresentando típicos números de vaudeville, em geral, sapateados com crianças, todos adoráveis, que fazem lindamente a ligação entre as cenas.

Na Broadway, Rose foi feita por Angela Lansbury, Tyne Daly, Bernadette Petters e, mais recentemente, Patti Lu Pone, que por sinal tem certa semelhança com a estrela daqui Totia Meirelles. Assisti à Bernadette e, antes dela, à Linda Lavin, substituindo Tyne (prejudicada por sua pouca potencia vocal).

Todo fã de musical, porém, conhece o show por sua versão cinematográfica, que é absolutamente fiel e teatral (passou em nossos cinemas com alguns números cortados, mas a gente acompanhava tudo pela trilha que saiu em LP). Vendo o show, eu ficava pensando quando era adolescente e ficava ouvindo o disco para tirar as letras das canções. No filme, estão como Gypsy as atrizes Natalie Wood (encantadora e carismática, canta pouco com sua própria voz) e Rosalind Russell como Rose (o marido era produtor e lhe conseguiu o papel). Embora a voz seja mediana, acho Rosalind injustiçada. Tem garra, força e certo pedantismo que são notáveis. Muito melhor do que a caricata Bette Midler na versão para a televisão (também disponível). 

Gypsy é imbatível em quase tudo: em sua overture (a mais famosa e possivelmente melhor de todas), na passagem do tempo (quando viram adultos, uma perfeição), na trilha musical (Jules Styne, com a clássica Everything Come Up Roses, uma daquelas músicas que levantam o moral da gente), na caracterização dos personagens e o conflito, tudo sutil mas claro (e sem esquecer outra show stopper que All I Need is the Girl, na montagem atual muito bem dançado).O filme foi indicado a três Oscars e existe em DVD (fotografia, figurino, arranjos musicais).

Queria elogiar a atitude tão generosa da atriz Adriana Garambone (que vimos em Chicago), que comprou os direitos da montagem mesmo sabendo que seu papel seria secundário. A protagonista é mesmo Mama Rose e parece que é o papel da vida de Totia. Há muitos anos sou fã dela, observando-a em diversos trabalhos e fiquei especialmente contente quando finalmente a televisão lhe deu uma chance e a fama. Ela merece e confirma tudo isso com sua poderosa voz e performance. Se bem que fica difícil destacar pessoas num elenco tão grande (devem ser mais de 30) e tão perfeito (além de tudo gente bonita).

Adorei a secretária feita por Patrícia Scott Bueno, o trio de strippers veteranas Liane Maya, Sheila Matos e Ada Chaseliov, o André Torquato como Tulsa, o charme relax de Eduardo Galvão, rever o amigo Luiz Carlos de Moraes... ah, e as crianças, viva as crianças! Quem diria que teríamos disponíveis atores/cantores/bailarinos tão talentosos e afinados assim.

Enfim, é um projeto que traz mesmo a marca da dupla: o cuidado em detalhes, a criação em cima daquilo que já é bom sem traí-lo ou estragá-lo, o bom humor, o profissionalismo, o respeito às pessoas e ao talento. Gypsy tem no Brasil uma montagem a altura de sua reputação e já virou obra-prima.